fbpx

O Céu Aberto de C. S. Lewis

Por Gabriele Greggersen.

Quem já leu C. S. Lewis sabe que a imagem das sombras é recorrente em seus escritos. De fato, ele teve várias experiências de céu fechado, que lhe renderam muitas noites sombrias. O raiar do dia, a vinda da primavera, a luz do sol vêm sempre associados à sua busca por joy: alegria, júbilo, festa, a pátria perdida. 

De onde veio esse anseio? Como ele, tendo sido ateu e materialista anos a fio, pode ser considerado, até hoje, o apologeta entre céticos, cujos livros se vendem aos milhares mundo afora?

Catedrático de Oxford e Cambridge de literatura inglesa, Lewis foi reconhecido por algumas obras de crítica literária. Porém, notabilizou-se pelas obras de ficção, pelas quais retrata de diversos ângulos a sua história de filho pródigo, crivada por ironias e alegorizada em “O Regresso do Peregrino”, numa alusão a Bunyan.

Um dos atores principais da conversão desse irlandês de volta ao protestantismo, seu colega em Oxford e grande amigo, J. R. R. Tolkien, criador da celebrada trilogia de “O Senhor dos Anéis”, era católico ortodoxo romano.

Outra ironia é que Lewis, que tanto falava em sofrimento, teve muitos problemas com o sofrimento na vida real. Entre as perdas sofridas estavam a sua mãe, um colega de guerra no “front”, seu pai, um grande amigo e, quem sabe a maior de todas, sua esposa, Joy. Suas terapias para lidar com a dor eram ler, escrever e debater literatura com os amigos.

Segundo “O Mais Relutante dos Convertidos”, de David Downing, a felicidade na infância durou do seu nascimento, em 1898, até o falecimento de sua mãe, que era o alento da família com o seu refrescante equilíbrio emocional. Seu pai sofria de depressões e flutuações de ânimo, e por isso foi tachado de sentimental. Sua mãe era professora de matemática, filha de um pastor protestante. Até que foi vitimada pelo câncer, quando Lewis tinha nove anos de idade. 

Depois disso, Lewis e seu irmão mais velho, Warren, percorreram vários internatos ingleses — um deles parecia um campo de concentração e foi fechado com a internação de seu diretor por insanidade mental. Seu ambiente insalubre e sombrio, que “nem ao menos tinha biblioteca”, é retratado em “Surpreendido pela Alegria” (SPA), sua autobiografia. Voltou então à Irlanda para estudar no Colégio “Campbell”, onde foi perseguido por gangues.

Depois, ingressou no colégio “Cherbourg”, que era preparatório para a Universidade de Oxford. Nele, foi “adotado” por uma “mãe substituta”, que era espiritualista. Lewis descreve esse período como sendo a fase de queda em sua vida, em que pôs Deus em questão (cf. biografia de A. Nichola), principalmente pelo fato de Deus ter ignorado as suas súplicas pela cura da mãe. Tornou-se ateu.

Então, seu pai cedeu ao pedido de ter aulas particulares com William Kirkpatrick, que havia sido professor de seu pai. Lewis estudou com ele por três anos. Esse senhor, já idoso e ateu convicto, era muito admirado por Lewis, pois lhe dava uma formação nos moldes dos “clássicos”. Alguns autores que passaram a ler suas obras admitem que Lewis tornou-se um adolescente materialista “esnobe”, que tentava evitar Deus de todos os modos. Passou a apreciar as coisas tidas como racionais e científicas. Porém, continuava a manter a paixão pelos mitos e contos de fada. Foi assim que “tropeçou” num volume de “Phantastes”, de George MacDonald. Anos depois ele escreveria em SPA que esse livro “batizou” a sua imaginação de modo silencioso. 

Seus estudos em Oxford iniciaram-se em 1916. Já no ano seguinte, alistou-se para a guerra. No exército, fez amizade com o colega Paddy Moore. Depois de conhecer sua mãe e irmã numa folga, prometeu ao amigo cuidar delas, caso ele morresse. O amigo jurou o mesmo em relação ao pai de Lewis. Lewis acabou ferido por um estilhaço de bomba — fato que o fez retornar a Oxford. Seu amigo morreu no “front”.

No mesmo ano em que publicou uma série de poemas bem “obscuros”, que não alcançaram sucesso, ele passou a sustentar a Sra. Moore e a filha e retomou os estudos.
Nos primeiros anos de bacharelado, sua alma entrava em crise, dividida entre o provedor de uma família e o estudante desprovido de mãe e com o pai ausente; entre seu lado racional e o imaginativo; o frio e calculista e o emocional. Tornou-se, assim, um ser em busca de algo que não sabia precisar. Ele também havia se tornado um platônico, pois via uma “guerra” sendo travada não apenas “lá fora”, mas “dentro” dele: entre o espírito e a matéria, que devia ser maniqueisticamente “domada”.

Os anos seguintes aos de 1923 foram de descoberta do desejo pelo oculto e o conhecimento pessoal de um poeta que muito admirava: Yeats. Contudo, acabou se assustando com o aspecto sombrio da casa do autor e o estilo de vida de seus donos, que eram espiritualistas. Decepcionou-se ainda com episódios de possessão (presenciados por ele em diferentes contextos), que o afastaram do ocultismo.
Ainda em 1923, Lewis se impressionava com a leitura de “Phantastes”. Ele escreve a um amigo de infância relatando a sua apreciação por tal obra. Havia se tornado um idealista e panteísta, depois de ler autores ingleses, que negavam a Deus, exaltando os ideais humanos e os potenciais da natureza.

Dois anos depois, conheceu J. R. R. Tolkien e registrou em seu diário que ele reunia dois “defeitos” que lhe recomendaram evitar: era papista (católico) e filólogo.
Foi em Oxford, também, que conheceu um grupo de amigos, sobre o qual observou que, para a sua surpresa, eram cristãos e, ao mesmo tempo, inteligentes!

Começou, então, a apreciar os escritos de Chesterton. À semelhança do ocorrido a esse autor (cf. “Ortodoxia”), ele era como um náufrago que saiu de uma ilha, para acabar regressando à mesma. Notou ainda, num retrospecto de suas leituras, que os autores que mais amava tinham o mesmo “defeito” de serem cristãos, inclusive MacDonald — o que lhe parecia uma “traição”.

Assim, chegou à noite da Páscoa de 1939, em que Lewis saiu com esses amigos para conversar sobre Deus e o mundo. Porém, o argumento que o pôs de joelhos ao lado da cama veio de Tolkien. Ele o fez reconhecer que havia algo em comum entre os mitos, que eram a razão de ser daquele grupo: a narrativa sobre um mal assolando um povo e um deus que sai em resgate dele, sacrificando-se por ele (e algumas vezes, ressuscitando). Se todos os povos de todas as línguas, eras e culturas contam, em essência, a mesma história, então ela tinha de ser verdadeira. 

E então, Tolkien deferiu o golpe final: na história de Cristo, que tinha a mesma estrutura daquela dos mitos, o mito e o fato se casaram. A história da paixão é aquela que faz tudo se encaixar, dando sentido ao que se conta de forma profética por meio dos contadores de história de antes ou depois da sua vinda. A diferença de Cristo é que ele era real e sua história, verdadeira.
Iniciou-se, assim, um longo processo, que muitos não chamariam de conversão, por não ter envolvido qualquer experiência extraordinária. Contudo, representou, sim, uma guinada no caminho que Lewis estava trilhando. Quando estamos andando no sentido errado só podemos avançar se dermos a volta, retornando à estaca zero. 

O primeiro passo foi o reconhecimento da existência de Deus — o que fez dele um teísta. Num segundo momento, ainda conversando com seus colegas, com os quais fundaria um clube, percebeu que esse Deus não podia ser uma força transcendental, sem nome ou face. Tudo indicava que ele deveria ser pessoal e interferir no mundo. Se não, como explicar fatos inexplicáveis, como o mal?

Foi em um passeio de motocicleta com o seu irmão ao zoológico, que Lewis, já convertido, finalmente reconheceu que Jesus é Deus. Diz ele, em “SPA”, que saiu não crendo em Jesus e voltou crendo.

Quando o processo se completou, sua imaginação se libertou, produzindo a riqueza de obras com as quais nos brindou, incentivando-nos a sair ao encontro dos que estão a caminho, usando uma linguagem universal.

Apesar de ter sido um converso “relutante”, Lewis não foi um converso inseguro ou hesitante; tanto que confessa que foi capturado por algo sobrenatural, que pôs o “self-mademan” em cheque.

O cristianismo tornou-se para ele como uma grande casa com vários cômodos (cf. “Cristianismo Puro e Simples”). Com isso, era um dos mais livres convertidos, pois sua fé lhe permitia dialogar com todas as religiões e crenças; além de ser um dos mais apaixonados e convictos apologetas cristãos da história. Não praticava proselitismo. Antes, valorizava a sabedoria por trás de toda arte, cultura e religião humanas, desde as mais antigas, fazendo-as aflorar e apontar para além do céu fechado.

Para Lewis, melhor é ser um pagão que não conhece as verdades do evangelho, do que um cristão por demais familiarizado com elas. Nesse sentido, o pagão está mais perto de Deus do que o cristão nominal, que nunca se arriscou para fora do mundo construído a seu redor.

A prova de fogo da sua teoria de que o sofrimento é o megafone de Deus, que anuncia a “magia mais profunda de antes da aurora dos tempos”, é retratada no filme “Shadowlands”, nas últimas palavras de Joy, que ele desposou após o diagnóstico de câncer. Elas refletem as palavras de Aslam, ao explicar a morte às crianças em “A Última Batalha”: “Seu pai, sua mãe e todos vocês estão mortos, como se costuma dizer na Terra das Sombras. As aulas acabaram: chegaram as férias! Acabou-se o sonho: rompeu o amanhã!” (tradução própria).

Gabriele Greggersen é missionária no mundo acadêmico e doutoranda em estudos da tradução pela UFSC. www.cslewis.com.br
Disponível em http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/329/o-ceu-aberto-de-c-s-lewis Acesso em 30 de julho, 2014

Receba todas nossas novidades

plugins premium WordPress