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O Intelectual que Fazia Milagres e o Professor Exemplar

Por Paul Freston.

Nas minhas andanças pelos tesouros cristãos dos primeiros séculos, tropecei inesperadamente num texto escrito provavelmente no ano de 238. É uma homenagem de um ex-aluno ao seu mestre, e fascina tanto pelo retrato que pinta de um professor cristão exemplar, como pelo que revela sobre a combinação de características pessoais de seu autor. O professor tão querido, sábio e aberto se chamava Orígenes; o aluno nos é conhecido pelo nome de Gregório “Taumaturgo”, ou seja, “operador de milagres”. Nos elogios que faz ao seu mestre, percebemos que Gregório era um cristão fascinado pelas questões intelectuais, uma pessoa pensante e de mente aberta. E, do apelido que ganhou ao longo da vida, sabemos que era também um cristão carismático, que tinha dons do Espírito Santo, como a capacidade de operar milagres. No século 21, é raro encontrar um cristão com essa junção de qualidades: intelectual e pensante, e também famoso pelos seus dons carismáticos. Mais do que isso, a mera possibilidade dessa combinação é desaprovada por muitos cristãos, tanto pelo lado pensante como pelo lado carismático. Muitos cristãos de maior formação intelectual desprezam os carismáticos, e muitos carismáticos desconfiam dos intelectuais e de toda tentativa de “crer e também pensar”. Contudo, parece que a ideia de um “milagreiro que pensa” não era difícil de assimilar no terceiro século!
  Gregório era de uma família não cristã da região do mar Negro, onde hoje é a Turquia, e pretendia estudar direito em Beirute. Porém, ao chegar à cidade de Cesareia, na Palestina, conheceu a academia de Orígenes, um dos centros mais importantes de instrução cristã no mundo. Gregório logo se encantou com seu novo mestre e se converteu. “Brotou dentro da minha alma um amor intenso por Cristo e pelo seu amigo e profeta [Orígenes].” Estudou cinco anos em sua escola, antes de retornar à Turquia. Passados poucos anos, se tornou bispo de sua cidade natal, uma região de forte religiosidade pagã e com apenas dezessete cristãos! Durante um longo episcopado, se dedicou à evangelização. A igreja cresceu a tal ponto que, segundo dizem, na ocasião de sua morte havia pouquíssimos não cristãos na região. Ele é lembrado não apenas como um evangelista bem-sucedido, mas também como operador de “maravilhas semelhantes às dos apóstolos”. Todavia, apesar de praticar muitas curas, exorcismos e outros milagres, ele não se deixou envaidecer nem se enriqueceu com a fama que conquistou. Antes, foi um exemplo de vida humilde, modesta e sábia para o seu rebanho.
  Que diz esse bispo carismático sobre seu mestre Orígenes? Ele o apresenta como alguém que exortava os cristãos a trazerem os tesouros intelectuais dos gregos para servir à “filosofia cristã” (entendendo o cristianismo como a “verdadeira filosofia” ou postura diante da vida e do mundo), imitando assim os judeus, que, no momento do êxodo, trouxeram os tesouros do Egito para adornar o Santo dos santos. Para Orígenes – ele diz –, “não poderia existir a piedade genuína para com o Senhor de todas as coisas em quem despreza o dom do conhecimento”. Claro, essa frase não significa que, para ser cristão genuíno, é necessário ser um intelectual. Antes, o cristianismo é profundamente democrático e acessível a todos os níveis de formação, todas as classes sociais e todas as idades. A frase significa que o anti-intelectualismo não é cristão, pois o desprezo do dom do conhecimento seria uma ofensa ao Senhor que criou todas as coisas. Alguém pode ser muito piedoso em outras áreas, mas, se combina isso com o anti intelectualismo, a sua piedade fica deficiente.
  Para Orígenes – diz Gregório –, a valorização do dom do conhecimento significava ter um espírito aberto. “Para nós [alunos de Orígenes], não havia tema proibido. Não havia áreas do conhecimento escondidas de nós. Mas tínhamos liberdade para estudar todo tipo de texto, seja de estrangeiro ou grego, seja espiritual ou político, seja divino ou humano.” Não que Orígenes abandonasse irresponsavelmente os seus alunos; em vez disso, ele “colocava ordem na nossa confusão”. Mesmo assim, ele não cerceava os seus alunos. “Ele não nos apresentava uma só escola de filosofia, mas todas. E ele mesmo ia adiante de nós, nos segurando pela mão, como um viajante experiente, e mantendo as nossas cabeças acima das águas. Assim, ele nos apresentou tudo que é útil e verdadeiro em todos os filósofos, rejeitando tudo que é falso.” 
  Isso quanto ao conteúdo. Quanto ao método, Gregório diz: “Ele nos questionava e escutava as nossas respostas; e quando detectava algo de bom, limpava o solo e o irrigava. Ele nos ensinava de maneira racional, e não com a retórica”. Mas Orígenes era mais do que um profissional competente; era um discipulador. “Não somente com as palavras, mas também com as ações, ele nos estimulava”, por meio “da amizade e de uma disposição afetuosa. E, acima de tudo, ele tocava as nossas disposições morais e o nosso modo de vida”.
  Portanto, no conteúdo, no método, no relacionamento e na conduta, Orígenes foi um modelo. Parece até perfeito demais. Contudo, “não falo dele como um padrão perfeito, mas como alguém que desejava imitar o padrão perfeito”, que para Orígenes seria, claro, o próprio Jesus. E o caminho da imitação era o conhecimento de si mesmo e o auto-exame. “Ele nos elevava à vocação nobre de nos examinarmos a nós mesmos, ensinando-nos a habitar dentro de nós mesmos e tentar nos conhecer a nós mesmos.” Orígenes foi pioneiro em muitos aspectos da vida intelectual cristã. Algumas de suas ideias doutrinárias foram posteriormente rejeitadas, sem que o valor de suas muitas outras contribuições fosse prejudicado. Mas ninguém duvidou de seu amor a Cristo, de sua santidade e de seu exemplo como mestre – exemplo para Gregório e para nós hoje. O próprio Gregório também continua como exemplo de uma combinação intrigante: um carismático que pensa!
        Fonte: Site Ultimato

• Paul Freston, inglês naturalizado brasileiro, é professor colaborador do programa de pós-graduação em sociologia na Universidade Federal de São Carlos e professor catedrático de religião e política em contexto global na Balsillie School of International Affairs e na Wilfrid Laurier University, em Waterloo,

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